sábado, 22 de janeiro de 2011

Querido diário

Meu querido diário,
Trancado sob o escapulário que minha mãe me deu
Confidente dos pensamentos só meus

Há tempos que não lhe abria
Desde aquele dia que eu chorei pela última vez
Não desfruto da sua companhia

É que pensei que fosses mais antiquado
Do que retratos pintados à mão
Mas esqueci-me que só você
Me vê pelos esquadros da dor

Venho, depois desse longo hiato
Contar-lhe um fato deveras estarrecedor
Após a longa noite em que se transformou minha vida
Nasceu em mim, novamente, a esperança do amor

Eu não tenho mais pressa
Meu único último desejo
É que o tempo seja destituído do seu altar
E aproveitado como simples instrumento
Que sejamos mensurados em momentos
E as rugas sejam de paixão

Meu querido diário,
Já não ando mais tão triste
Pode parecer só um chiste
Mas para você não guardo segredos
Você bem sabe
Ando até sorrindo
E caminhando de cabeça erguida
Agora sei que tem gente amiga pra me escutar
E pra me dar a mão

Meu querido diário:
Coração.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A sombra

Aquela antiga jovem amiga
Ontem veio me visitar em sonho
Dando-me ciência dos meus sentimentos
E se um dia eu a amei
Foi-se então o tempo

Na figura onírica que formou-se
Ela tinha cabelos grisalhos
Como se estivesse a desbotar
Já tendo se esvaído toda a imagem de anjo
Construída ao longo de anos

Não que tenha qualquer importância
Minha opinião subconsciente
Porque a realidade é bem mais importante
E os fatos são que ela
Não é nem sombra do que era antes

Perdeu a risada simples
E tom de comédia pastelão
Embriagou-se com um novo mundo
Cheio de diversão
Vomitou nos velhos hábitos
Perdida na noite
Seus cabelos negros permanecem
Mas seu coração é que é agora grisalho

Não há do que reclamar, por fim
Ela vai ser muito feliz
Mas o será bem longe de mim.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O incêndio

Há cinzas por todos os lados
Os espelhos foram todos cremados
Mas eu não preciso deles
Para saber o que meu rosto diz
Dou socos no ar, e grito
"Está tudo queimado, mas eu não morri!"

Mas talvez eu esteja enganado
Sinto que as labaredas não se dissiparam
E que por dentro eu queimo
São os resquícios do incêdio que estão em mim

O fogo, com seu senso de ironia
Queimou toda a mobília
Sala, copa, banheiro e cozinha
Para me deixar para o fim

Então de repente, de forma latente
Palpita em minha cabeça a mitologia
A fênix que queima e renasce
Os sonhos me invadem, grandiosos
Meu coração ardente clama por misercórdia
Mas não iremos fazer isso pela glória
Vencer é questão de sobrevivência
Se o fogo não tem clemência
Eu não tenho mais o que perder.

sábado, 1 de janeiro de 2011

Os mortos não choram

As bailarinas dançaram o quebra-nozes
Em cima dos corpos imóveis
Mas tristes, desistiram
Quando o silêncio persistiu, incólume
A torturar-lhes a vaidade

E o sonho que elas tinham
De expor toda a beleza
Foi levado pelo vento
Junto às suas convicções
Tornaram-se putas baratas
Dançarinas de bórdeis

O que elas ignoravam, decerto,
É que é impossível ser aplaudido num mundo deserto
E as lágrimas devidas
A mais bela das coreografias
Simplesmente, não vieram à tona
Porque os mortos não choram.



Dedicado à Ana, minha, agora, bailarina favorita.