quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Reflexivo

     Acordei com o toque do celular. O qual, aliás, sempre me irritava. Já deveria tê-lo trocado há muito tempo. Atendi meio sonolento:
    • Alô?
    • Heitor, já está pronto? - reconheço a voz doce, quase infantil de Agnes do outro lado da linha.
    • Pronto para o quê? - perguntei, ainda meio lisérgico.
    • Você não muda nunca, mesmo. Esqueceu-se que combinamos de ir ao parque de diversões hoje?
     Repentinamente me lembrei do compromisso que havia agendado na noite anterior.
    • Ah, Agnes, não podemos fazer um programa normal de adultos, como ir ao teatro, ao cinema ou para o quinto dos infernos?! - argumentei, tentando me esquivar.
    • A juventude é um estado de espírito, meu querido! - respondeu, como se eu fosse ser convencido por esses clichês de novela.
    • Tudo bem, eu pergunto para o meu espírito quantos anos ele tem quando ele acordar.
    • Ora, você me prometeu, seu infeliz.
    • Eu teria prometido bater de porta em porta pregando a palavra do Senhor depois de cinco doses de tequila.
    • Não me venha com essa, sua torpeza não vale como desculpa para mim. Logo eu, que já te carreguei tantas vezes para casa. Te aguardo no local de sempre, às duas horas.
    • Está certo – resignei-me, por fim. Não conseguia mesmo resistir aos pedidos de Agnes.
     Terminei a chamada e olhei para o relógio. Já passava muito da uma da tarde. Levantei-me apressado, vesti a primeira roupa que me veio às mãos, me encaminhei até o banheiro, joguei um pouco de água no rosto, escovei rapidamente os dentes, peguei meu maço de cigarros e meus óculos escuros e saí resmungando.
    • Que diabos! Parque de diversões! Era só o que me faltava.
     A casa de Agnes não ficava muito distante da minha, devia ser uns quinze minutos de caminhada. Sempre que íamos fazer alguma coisa, marcávamos de nos encontrar na pequena praça que ficava em frente a sua residência. Desta vez, porém, ainda lutando contra os meus olhos, que teimavam em fecharem-se sozinhos, demorei mais do que de costume no trajeto.
      Quando cheguei ao, naquele momento, malogrado lugar, avistei-a, sentada num dos bancos que ficavam encrostados por entre pequenas árvores. Ao avistar-me, não fez a mínima questão de esconder a impaciência:
    • Certamente que você não tem ascendência britânica! - disse num tom jocoso.
    • E para que eu hei de querer ter na minha linhagem aqueles bastardos ingleses? As únicas coisas boas que saíram da Inglaterra foram algumas bandas de rock e a Kate Moss.
    • Como se você também não fosse um bastardo! Me fez esperar aqui mais de meia hora.
    • Me dê um tempo, vai! Eu estou fazendo o favor de te acompanhar até esse parque. Por que raios você tem que me levar nesse túnel do tempo que desemboca na sua infância?
    • Porque você é meu melhor amigo, quem mais iria aceitar ir comigo?
    • Com certeza, ninguém com mais de 15 anos e em pleno gozo das faculdades mentais.
    • Sorte minha que você é maluco! Agora vamos, temos um longo dia pela frente.
     Por inércia, acompanhei-a e fomos conversando sobre coisas banais, como a noite de ontem ou como ela achava que eu parecia que iria a um velório. A verdade não era muito diferente, eu estava prestes a enterrar a minha dignidade. Acendi um cigarro e segui o cortejo fúnebre.
     Não demoramos a chegar ao parque. Ficamos algum tempo na fila e então pagamos nossas entradas. Não demorei também a sentir vergonha de estar naquele local. Parecíamos ser os únicos adultos ali que não estavam acompanhando os filhos. Sortudos! Podiam até estar se divertindo, mas sempre teriam nos filhos uma prova cabal, junto ao ar de tédio, do motivo pelo qual estavam ali.
     Era tudo muito colorido e, não fosse pelos meus óculos escuros, certamente haveria o risco de eu me cegar ao olhar desavisadamente para um algodão doce ou uma pista de carrinhos de batida. Agnes, entretanto, se deliciava com todo aquele ambiente. Nunca entendi porque nos dávamos tão bem, e por falta de explicação melhor, aderi à velha teoria de que os opostos se atraem.
     Ela foi logo me puxando pela mão para que fossemos à montanha-russa. Eu, preocupado em preservar minhas córneas, instintivamente fui caminhando junto a ela. Havia uma pequena espera, e na frente, uma placa indicativa da altura mínima, que fez com que meu rosto se enrubescesse.
     Chegou nossa vez, subimos e nos aprontamos. O trajeto começou e entre descidas, subidas e loopings, meu estômago fez-me o favor de se fazer presente. Não tinha comido nada o dia inteiro e ainda tinha vomitado boa parte do que consumira no dia anterior. Ao final do trajeto, Agnes era pura felicidade, enquanto eu sentia um mal-estar terrível. Sempre sensível, ela perguntou se eu estava bem. Acenei positivamente com a cabeça, mas disse que ia descansar.
    • Vou contigo, então – disse, solícita.
    • Não é preciso, vou me recuperar em breve, vá se divertir. Afinal de contas, foi você que fez questão de vir. Não se importe comigo. Vou sentar em algum lugar e te ligo quando me sentir melhor.
    • Tem certeza?
     Apenas olhei-a dentro dos olhos, virei as costas e caminhei em busca de algum lugar em que eu pudesse me sentar ou lavar o rosto. De repente, percebi uma tenda, onde na frente lia-se uma placa em letras maiúsculas: “CASA DOS ESPELHOS”. Olhei em volta e não avistei nenhum lugar no qual houvesse a possibilidade de me aprumar. Pensei que poderia relaxar um pouco e talvez até soltar algumas risadas com meus reflexos desfigurados, ali. Retirei os óculos escuros e entrei.
     O local estava completamente deserto. Naquele pequeno pedaço do céu para as crianças, e até mesmo para alguns adultos – vide Agnes – onde era possível se drogar naturalmente, com endorfinas e outras substâncias que causavam prazer, a sala espelhada era uma das últimas opções de diversão. Contudo, o fato de estar vazia só aumentou meu desejo de permanecer. Dei uma pequena volta, olhando as imagens tortas que se faziam ali presentes. Tudo era eu, de uma ótica diferente. Comecei a refletir sobre aqueles reflexos e pensar que aquilo tudo era uma pequena maquete da sociedade em que eu vivia, do meu mundo privado. Cada um me enxergava de um jeito, para cada pessoa, eu possuía uma essência diferente, que fazia com que tivessem uma opinião diversa de mim. Nesse momento me questionei: qual dos eus ali presentes, seria o verdadeiro?
    • Eu sou você! - gritou uma voz atrás de mim. Olhei ao redor. A sala ainda estava completamente deserta.
    • Quem está aí? - perguntei elevando o tom de voz.
    • Eu sou você, prazer! - escutei novamente.
     Um pouco assustado, me virei e percebi que a voz vinha de um espelho central, turvo e fragmentado. Me aproximei lentamente. Foi quando o espelho fez um movimento diferente, puxou um cigarro e começou a fumar. Achei aquilo tudo loucura, que devia ser fruto do mal-estar que estava sentindo. Todavia não resisti à tentação de dialogar:
    • Como pode ser eu, se eu não me sinto você?
    • O que eu posso fazer se não é bom em se reconhecer?
    • Eu nunca me vi desse jeito, maldita alucinação!
    • A verdade, meu amigo, é questão de opinião.
    • Para de rimar tudo que eu digo, espelho estúpido!
    • Está nervoso porque eu sou o seu orgulho caído?
    • Você não passa de uma pobre assombração.
    • E que mais é você, dos ateus o mais cristão.
    • Olha, eu devo estar ficando maluco, mesmo.
    • Nisso eu concordo, estás a viver a esmo.
    • E como deveria então, me orientar?
    • Bom começo seria se livrar da máscara.
    • De que máscara você fala?
    • Daquela que você usa, no trabalho e fora de casa.
    • Mas eu sou o mesmo em todo lugar.
    • Nisso você está errado e eu posso provar.
    • De que maneira, pobre diabo?
    • Aquela moça linda, que veio ao seu lado...
    • Não abra a boca para falar dela.
    • É tão meiga e sincera...
    • Estou avisando, estou prestes a esmurrar-te.
    • Nossa dor será solidária, meu “cumpadre”.
    • Só se eu me cortar com algum dos seus cacos.
    • Já não é suficiente ter o coração em pedaços?
    • Eu não entendo nada do que você diz.
    • É porque ama aquela moça, mas ama mais ser infeliz.
    • E de onde vem tal conclusão?
    • Do medo que tens de ter uma verdadeira paixão.
    • Eu a amo mais que tudo, seu imundo!
    • Somos nós, só um vagabundo.
    • Vá cuidar de outro assunto, que te importa a vida alheia?
    • Eu sou você, idiota, nunca se esqueça.
    • Oscar Wilde deve estar a rir de mim abaixo dos campos de centeio.
    • Somos um Dorian Gray, porém mais feio.
     Deitei e pensei por alguns instantes. Comecei então a chorar, coisa que eu não fazia há anos. Não porque ele havia dito que eu era feio, mas porque eu começava a entender o meu eu verdadeiro. Meu amor por Agnes, minhas várias faces, eu tinha emprego, algum dinheiro, mas não tinha amor. Um frio tomou conta da minha barriga e senti meus cabelos se arrepiarem. Eu era um miserável, concluía, por fim. E coube ao meu espelho mostrar isso a mim.
     Sentei no chão e fiquei desconsolado. Depois de algum tempo pensando, uma fúria tomou conta de mim e me arremessei diante da superfície reflexiva urrando:
    • Me deixa viver minha vida de mentira!
     O espelho se espatifou em vários pedaços. Saí correndo, com medo que alguém pudesse ter presenciado a cena. Para o meu espanto, já era noite. Meu celular tocou. Nunca me agradou tanto aquela música ridícula. Era Agnes. Combinamos de nos encontrar na saída. Nos cumprimentamos e puxei-a para um táxi. Ficamos calados, até que ela tomou a iniciativa:
    • Você não parece bem.
    • Dormi em um banco e tive um sonho ruim.
     A conversa terminou ali. O táxi a deixou em casa, numa despedida rápida. Rumou então para o meu prédio. Desci e paguei, sério. Entrei em casa, ainda aturdido, o que tinha sido tudo aquilo? Mas eu estava exausto, tirei minhas roupas e deitei-me. Os acontecimentos daquele dia ecoavam na minha cabeça. Cheguei a conclusão de que tinha sido tudo besteira. Tomei um calmante e dormi tranquilamente. Não sem antes trocar a música do celular.

Um comentário:

Unknown disse...

Gostei do texto, principalmente da parte em que cita Oscar Wilde! O Retrato de Dorian Gray é um dos meus livros favoritos!